Sou professora, coisa que gosto muito! Sou professora no curso de Jornalismo, coisa de que também gosto muito!!!! A aula era de "Cultura das mídias", falávamos de muitas coisas... imagine! Levei uns jornais antigos, uns "linguados" (tiras de papel onde os jornalistas e repórteres faziam seus rascunhos antes de montar a matéria com os tipos móveis...), levei os chamados "recortes", umas folhas onde se colavam matérias sobre diversos assuntos publicados em outros jornais, o famoso "clipping"...
De onde tirei todas aquelas raridades, devoradas pelos olhares curiosos e interessados dos alunos? Do acervo de Pedro Correia Marques!!!!
Sensacional ver o encontro das gerações: um "monstro" do jornalismo português e os futuros e entusiastas jornalistas brasileiros!
Valeu para a professora!!!
CORREIA MARQUES, UM JORNALISTA E MUITAS VOZES "Gosto de jornalismo, (...) – uma profissão cheia de imprevisto, de gimnástica mental, e, sobretudo, porque nele encontrei uma forma nobre e eficiente de servir as minhas ideias. Eu sou um homem para quem não há posições neutras nem indiferentes. Sou um homem de opinião. O jornalismo permite-me servi-la. Por isso gosto da minha profissão." (Pedro Correia Marques em entrevista Mundo Gráfico, “Gosta da sua profissão?”,15/04/1941, p. 18)
sexta-feira, 3 de agosto de 2012
quinta-feira, 26 de abril de 2012
26 de Abril dia de São Pedro de Rates e de PEDRO CORREIA MARQUES
Se fosse vivo, Pedro Correia Marques continuaria com certeza sendo um grande jornalista! Estaria fazendo 122 anos... deixou muito como jornalista. Segue um texto seu, cristalino como deve ser o texto jornalístico (não importa se informativo ou opinativo!) As apreciações sobre a austeridade inglesa num momento delicado do pós-guerra, num texto que qualquer leitor poderia entender pela clareza e sobretudo pela contextualização que vai tecendo um panorama muito próximo ao entendimento do leitor. Aí vai então a lição...
COMO SE COME EM LONDRES
Há
cerca de dez anos esteve em Lisboa um jornalista alemão muito distinto – depois
professor de jornalismo na Universidade de Hamburgo. Quando se retirou, após
algumas entrevistas políticas, verificamos, ao despedirmo-nos que levava uma
pasta cheia de relatórios de bancos e companhias e de recortes de informações
econômicas e financeiras.
E ante
a nossa admiração por este interesse especialístico num homem que até 1918 fora
oficial do Estado maior e então era jornalista, respondeu, em espanhol – a
língua em que comunicávamos:
-
Cuando um aleman viene em um país extragero, La primera cosa que procura
conocer es lo que esse país compra ó lo que esse país vende. Todo lo demás, lãs
intervius con el señor Fulano ó com el señor Mengano, todo eso es panorama.
Assim
era então. Hoje, 16 meses decorridos sobre a Vitória, generalizadas as
dificuldades da vida a todos os sectores da sociedade e a todos os países desta
miseranda Europa, o que todos querem saber é o que os outros países comem e
como comem.
Certamente
as preocupações de outra natureza e as predilecções de ordem cultural não
despareceram, mas passou a vida a regular-se principalmente por esta sentença
antiga:
-
Primum vivere, deinde philosophari.
Na
verdade, para que o espírito exerça a sua nobre actividade, é preciso que o
suporte material subsista.
Ora
como vive a Inglaterra, que era uma nação poderosa e opulenta?
Evidentemente,
em corajosa restrição das suas mais caras e consuetudinárias comodidades.
Aqueles pequenos almoços ingleses em que havia com tanta fartura o baconand eggs são hoje uma sobriedade
monástica, de ordem penitente. No Hyde
Park Hotel, onde nós estamos – e que é dos que servem melhor, segundo nos
diz um estrangeiro que aqui está há largo tempo – o bacon and eggs só duas vezes por semana é servido com o café
matinal. Mas o precioso toucinho vem reduzido a uma película tão delgada, que
maravilha como foi possível cortá-la tão fina. Os ovos mexidos – que em breve
amostra acompanham o Baco – são ffeitos com ovos em pó, um produto desidratado,
desenxabidote.
Nos
outros dias da semana o bacon and eggs
é substituído por uma salsicha... de pão, muito “desconsolada”, (a fazer
saudades das alheiras, que ainda se encontram em Lisboa) ou por um bocado de
arenque fumado. Um dos nossos companheiros não gostou da salsicha e no dia
seguinte mandou vir o arenque fumado; mas o acepipe afigurou-se-lhe detestável.
Provou e deixou. E solicitou do seu companheiro de quarto (a crise da habitação
traz os hotéis sempre cheios e fomos aboletados a dois e dois) que perguntasse
à criada – pois ele não fala inglês – se não havia outra espécie de peixe. E
ela respondeu, amável, que sim e no dia seguinte traria outro peixe, E
efectivamente, na manhã imediata, diz, empurrando a mesa do pequeno almoço:
- Good
morning, sirs: to-day another kind of fish.
Destapamos, pressurosos o
prato: era um bocado de arenque cozido, sem qualquer espécie de tempero, porque
o azeite é produto de que há anos não há uma gota na Inglaterra e outras
gorduras são tão escassas, que havia que comer o peixe a seco, sem tempero. Tem
algo de sabor do bacalhau de qualidade mais baixa que encontramos em Portugal,
mas que, temperado com seu escasso fio de azeite – escasso porque é pouquíssimo
– e acompanhado dumas batatas e dois bocados de couve, se come com certo
prazer. Sem mais nada, é um desconsolo, uma desolação. O autor destas linhas
comeu corajosamente; o seu companheiro praticou novamente um jejum,
provavelmente sem mérito, por não ser voluntário...
Que
mais? De açúcar, um quadradinho minúsculo, que se dissolve sem alterar
sensivelmente o travo de café com leite. De resto, estamos quase acostumados:
bebe-se, sem já se considerar triaga. Mas às vezes vem-nos uma saudade infinita
da “Brasileira” do Chiado, onde o açúcar, já limitado, ainda é facultado em
quantidade tão razoável...
De
manteiga dois quadradinhos minúsculos também e não nos admiramos disso, se
tivermos em conta que a manteiga distribuída às donas de casa para todo o mês é
a que outrora se consumia num dia.
E ainda
uma envergonhada amostra de doce de laranja e duas fatias de pão delgadinhas,
uma tostada e outra ao natural... cortadas em diagonal para fazerem quatro
porque os olhos também comem.
Isto é
hoje o pequeno almoço dos hoteis, outrora tão abundante e saboroso.
O
almoço e o jantar são igualmente reduzidos: se se como pão não se come doce
como sobremesa, terá de se prescindir da pequena ração de pão distribuído –
mais ou menos a quantidade equivalente ao meio “pão-seco” dos hotéis
portugueses. Depois sopa – uma concha de qualquer “consomé” – ou acepipes, que
constam de três ou quatro variedades de hortaliça em quantidades
insignificantes e o prato do dia: duas ou três batatas e uma reduzida porção de
carne, ave ou peixe. Vinho há que tirar daí o sentido, porque uma garrafa – e
não das grandes marcas – custa 60$00 ou 70$00. Contentemo-nos com uma caneca de
“pale ale”, esta cerveja especial da Inglaterra, a que o nosso paladar já se
vai acostumando.
Uma
refeição destas custa 65$00 a 70$00, traduzida em português a moeda inglesa.
Se
quereis oferecer um jantar a um grupo de amigos, tomai cautela com os
extraordinários, senão encontrar-vos-eis, no fim com uma conta de cinco libras
(500$00) por cabeça...
Os
aspectos que encontramos nos mercados e nas lojas, advertem-nos desta gravidade
alimentar. Uma galinha no mercado legal custa o equivalente a 80$00
E nas
casas de comidas se lêem avisos como este:
- Regret: no crips without fish. (Não se vendem batatas
fritas, sem se consumir peixe). Há gente que, pelas dificuldades da vida
recorria ao consumo exclusivo das batatas, mais baratas que o peixe.
Pelas
paredes, pelos tapumes, pelos lugares habituais dos anúncios, lêem-se, em
grandes caracteres, recomendações como estas:
- If you don’t want it, why do you take it? (Se não precisa
disso, porque se serve?)
- Don’t ask for Bread unless you really want it? (Não peça
pão, salvo se na verdade precisa dele).
São
admonendas aos que nos restaurantes se servem e deixam a comida nos pratos. Um
dia o ministro da Alimentação viu que um jornalista americano deixara uma
batata.
-
Porque não come o senhor essa batata? – perguntou.
-
Porque não me apetece – retorquiu o jornalista.
- Mas
não vê que dessa forma estraga um produto, que faz falta na economia da Inglaterra?
- Sinto
muito, mas não posso comer a batata...
O
ministro pegou num garfo, espetou a batata e comeu-a, consciencioso do valor do
exemplo.
Outros
cartazes recomendam o trabalho como recurso para melhorar a vida:
- Extra effort means better living now!
A Inglaterra toda suporta
valorosamente estas severas restrições. Há o mínimo suficiente para todos. Nada
sobra a ninguém. E o regime é igual para todas as classes. Quando visitamos o
porto de Londres, almoçamos com alguns dos directores: o almoço veio da cantina
e foi igual ao de todos os operários. Isto dá ao sistema uma grande autoridade.
O racionamento proporciona a cada um ração muito reduzida de peixe, carne, pão,
chá, açúcar, gorduras. Mas a ração não falta. E se por um motivo imprevisto –
uma greve por exemplo – não se fez a distribuição, o direito do consumidor não
preteriu: receberá a porção atrasada com a nova porção “vencida” logo que seja
possível.
A
Inglaterra trabalha intensamente, mas reserva para si apenas o mínimo
indispensável. Tudo o mais é exportado, a fim de pagar o caríssimo preço da
Vitória. Há aqui produtos ingleses livres de tabelamento, que se vendem mais
caros em Picadilly que nas lojas da Baixa de Lisboa. Certas marcas de tabaco,
por exemplo.
Vai
abrir uma exposição intitulada: - “A Inglaterra pode fazê-lo para demonstrar as
possibilidades da indústria britânica, bastante e suficiente para produzir o de
que a Nação necessita. E logo o característico humor britânico “lançou” este
comentário:
- “Pode
fazê-lo, mas não para os ingleses”.
É que a
maior parte da produção nacional britânica se exporta. O “wisky”, a tradicional
bebida inglesa, quase não se bebe na Inglaterra, pelo preço que atingiu. Mas a
produção é a mesma, se não maior. Mas para exportação.
O que
principalmente interessa em tudo isto, é a disciplina do povo inglês, a sua
compreensão da necessidade deste sacrifício, embora na Imprensa por vezes
surjam críticas à maneira como, num outro pormenor, o sistema funciona.
Londres,
21 de Setembro
C.M.
(Publicado na coluna criada pelo jornalista "Das ideias e dos factos", em “A Época” (?) em 24 de setembro de 1946)
domingo, 24 de julho de 2011
Resultados de pesquisa!!!

Caros seguidores, que grata surpresa encontrar num sebo, na Paraíba (Brasil), via Estante virtual, uma publicação de 1963, da Junta de Investigações do Ultramar (Centro de Estudos Polícos e Sociais), Lisboa, intitulda "Curso de Jornalismo", cujo primeiro texto é de PEDRO CORREIA MARQUES - Técnicas de direcção, edição e preparação de jornais.
Trata-se e uma publicação que conta com a contribuição de vários outros nomes relevantes na e para a prática jornalística em Portugal. Além de Pedro Correia Marques - diretor de A Voz, temos:
- Prof. Dr. Jacinto Ferreira, diretor de O Debate
- Dr. Barradas de Oliveira, diretor do Diário da Manhã
- João Coito, do Diário de Notícias
- Dr. Almerindo Leça, diretor da Semana Médica
- Adolfo Simões Müller, diretor dos jornais infantis Zorro e João Ratão
- Trabucho Alexandre, chefe de redação do Diário Lusitano
- Engenheiro Silva Dias, diretor dos serviços de programas da Emissora Nacional
- Monsenhor António Avelino Gonçalves, diretor do diário Novidades
- Engenheiro Barradas da silva, diretor geral da Radiotelevisão Portuguesa
Em breve, mais...
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
um pouco de história...

Correia Marques foi diretor de A Voz de 1947 até à sua extinção em 1971.

terça-feira, 20 de julho de 2010
SEQUÊNCIA AOS TEXTOS DE CORREIA MARQUES (Curso de Jornalismo: 1941-1943)
C U R S O D E J O R N A L I S M O
Reportagem Continuada
Dei-me afanosamente a procurar maneira de ganhar a vida, a tal reportagem a que me referi na crónica passada. Desci do castelo de S. Jorge para a tarefa de arranjar num mundo, cada vez menos conhecido (do tempo passado em Lisboa o mais dele fora o lapso de onze meses e dezassete dias de prisão), o meio de angariar o pão de cada dia.
Encontrei-me em pleno Rossio, então ainda com a placa de calcáreo branco, ondulada de basalto negro, que servia de pretexto para os literataços da Estranja dizerem ser preciso ter le pied marin para o atravessar sem acessos de mal de mer. Todos os meus haveres eram o cotim da farda, um saco de chita com roupa e 5 centavos.
- Meu caro Pedro; há que sair deste passo com os cabedais que possuis … - monologuei.
Comprei o «Diário de Notícias», afim de procurar, primeiro que tudo, um quarto onde acoitar a carcassa. E tinha que ser mobilado.
O mais barato que encontrei foi um na Travessa dos Fiéis de Deus. Custava (O tempora!...) 15 tostões por mês. Estes 15 tostões dão bem a medida de quanto o mundo se modificou, evolucionou, de 1912 para cá.
Procurei o quarto. Era pequeno, modestíssimo, como se pode calcular, mas limpo e com luz que lhe vinha dum quintalório, onde medravam couves tronchas e uns craveiros bem tratados. Mas eu tinha apenas dezassete vinténs (já despendera 10 réis na aquisição do jornal…) e não sabia donde me viria o resto. Mentalmente fiz as contas: 15 tostões por mês era meio tostão por dia. Propus à dona da casa pagar-lhe dia a ia. «Como estava a ver, eu saíra da tropa e ainda nem tempo tivera para escrever para a terra…»
Ela, boa mulher de Mangualde, que reforçava o salário do marido, operário numa garagem da Avenida, fazendo caixinhas de cartão para as farmácias, objectou que tal lhe não dava arranjo.
- Bem vê … a gente gosta de receber o dinheirinho todo junto, para ajudar à renda da casa. Antes queria que me pagasse então tudo no fim do mês. Eu cá espero … Não desconfio …
Aceitei a proposta e fiquei, obrigado, por honra e brio, a arranjar os 15 tostões o mais depressa que pudesse.
*
E eis-me agarrado ao mesmo número do «Diário de Notícias», `procura de trabalho. Eu estava disposto a deitar a mão ao primeiro que encontrasse. Sentia-me capaz de ir para uma taberna lavar pratos, contanto que me dessem de comer e uns tostões para a renda do quarto. Quando se está nesta disposição, encontra-se trabalho.
E eu encontrei.
Estava a negacear-me um anúncio que dizia: - «Manteiga. Vendedores precisam-se. Calçada do Combro, número tantos».
Fui lá, julgando que queriam caixeiros. Não era isso. O que pretendiam era vendedores ambulantes, que dessem colocação à manteiga sobrante da venda ao balcão, de si bastante minguada.
Afoitei-me à aventura de vendedor ambulante de «manteiga de Sintra» (era assim que o homem lhe chamava) e já vão ver como dei conta de mim.
O manteigueiro queria depósito ou fiador. Depósito, não o podia dar quem tinha de seu, naquele fim de tarde, dezassete vinténs e a ignorância de onde lhe podia vir mais algum mísero centavo. Fiador, também não não era possível encontrá-lo quem quase não conhecia ninguém em Lisboa.
Contei ao sujeito a minha história – adequada à circunstância, claro está – em duas palavras e rematei:
- É pegar ou largar. Ou me confia a «fazenda» a crédito ou vou procurar outro modo de vida.
Ele franziu o sobrecenho com ar cogitativo e indeciso, concentrou-se na meditação dos riscos da proposta e acabou por se resolver bravamente à passagem deste Rubicon:
- Pois bem! O senhor tem cara de homem sério, mas a verdade é que a gente vê caras e não vê corações. Contudo, sempre lhe entrego a fazenda. Pode ganhar dois tostões por dia, mas tem de vender o mínimo de quatro latas. Cada uma custa 25 centavos. Se não lhe serve assim, dou-lhe meio tostão em cada lata.
Declarei logo preferir a segunda forma, porque não confiava muito na minha aptidão de vendedor e receava que o homem desistisse da cooperação ao cabo de poucos dias de experiência.
Entregou-me ele um cesto de verga, desses de duas tampas presas a um eixo subposto ao arco da pega, e saí para a minha «vida comercial». O homem ficou a coçar o queixo, outra vez de aspecto cogitativo e a resmonear atrás do balcão:
- Nunca o diabo leve mais.
*
Estava vendedor ambulante de manteiga. Mas a quem vender o produto? Eu era e sou a mais completa e decidida negação para o comércio. Todavia fazia-se mister começar…
Na prisão tivera por companheiro D. Tomaz da Câmara, filho do saudoso dramaturgo D. João da Câmara e cadete de cavalaria. Era um rapaz débil, enfermiço, muito inteligente, muito sério e extremamente bondoso. Acusavam-no de tentar, com outros, «derrubar a forma de governo republicana e restaurar a forma de governo monárquico», fórmula usada para todos os autos, que se levantavam aos presos «talassas». Queria o investigador e organizador do auto obter do rapaz a declaração de que conspirava e de quem teriam sido os seus cúmplices. D. Tomaz, de aparência tímida e acanhada, piscando os olhos atrás dos óculos de aro branco, era duma firmeza de ânimo e de carácter inquebrantável. Consentia em responder afirmativamente apenas à primeira parte e recusava-se a dar a menor indicação quanto à segunda.
- O senhor conspirou?
- Sim, senhor.
- Com quem?
- Não digo.
- Fica incomunicável!
- Sim, senhor.
Quando estávamos presos a visita da família ou dos amigos era sempre esperada com ansiedade. As minutos da hora da visita eram o oásis na monotonia daquele deserto moral, que nos parecia a sala 1 ou a sala 2 da Casa de Reclusão da 1ª Divisão Militar. À noite a secretaria comunicava ao D. Tomaz que lhe havia sido levantada a incomunicabilidade. E ele, pressuroso, mandava avisar a mãe, virtuosa senhora, ainda felizmente viva, as irmãs, o tio, o excelente D. Tomaz de Mello Breyner, conde de Mafra, o «Tomaz Mafra», tão estimado por quantos o conheciam. Ficava radiante, à espera da hora da visita. Mas sessenta minutos antes do momento apetecido, surgia o interrogatório:
- O senhor conspirou?
- Sim, senhor.
- Com quem?
- Não digo.
- Está incomunicável!
- Sim, senhor…
As visitas da família, o D. Tomaz, a senhora Condessa de Mafra ou outras pessoas, chegavam, mas não conseguiam ver o rapaz, porque o 2.029 estava outra vez incomunicável…
E isto durou dias seguidos, até que se convenceram não ser possível arrancar nada daquele testaçudo 2.027.
Mas esta divagação desviou-me do meio da narrativa. No próximo artigo se continuará.
CORREIA MARQUES
ESTE NÚMERO FOI VISADO
PELA COMISSÃO DE CENSURA
-----«ACÇÃO»---nº4–15-5-941
Reportagem Continuada
Dei-me afanosamente a procurar maneira de ganhar a vida, a tal reportagem a que me referi na crónica passada. Desci do castelo de S. Jorge para a tarefa de arranjar num mundo, cada vez menos conhecido (do tempo passado em Lisboa o mais dele fora o lapso de onze meses e dezassete dias de prisão), o meio de angariar o pão de cada dia.
Encontrei-me em pleno Rossio, então ainda com a placa de calcáreo branco, ondulada de basalto negro, que servia de pretexto para os literataços da Estranja dizerem ser preciso ter le pied marin para o atravessar sem acessos de mal de mer. Todos os meus haveres eram o cotim da farda, um saco de chita com roupa e 5 centavos.
- Meu caro Pedro; há que sair deste passo com os cabedais que possuis … - monologuei.
Comprei o «Diário de Notícias», afim de procurar, primeiro que tudo, um quarto onde acoitar a carcassa. E tinha que ser mobilado.
O mais barato que encontrei foi um na Travessa dos Fiéis de Deus. Custava (O tempora!...) 15 tostões por mês. Estes 15 tostões dão bem a medida de quanto o mundo se modificou, evolucionou, de 1912 para cá.
Procurei o quarto. Era pequeno, modestíssimo, como se pode calcular, mas limpo e com luz que lhe vinha dum quintalório, onde medravam couves tronchas e uns craveiros bem tratados. Mas eu tinha apenas dezassete vinténs (já despendera 10 réis na aquisição do jornal…) e não sabia donde me viria o resto. Mentalmente fiz as contas: 15 tostões por mês era meio tostão por dia. Propus à dona da casa pagar-lhe dia a ia. «Como estava a ver, eu saíra da tropa e ainda nem tempo tivera para escrever para a terra…»
Ela, boa mulher de Mangualde, que reforçava o salário do marido, operário numa garagem da Avenida, fazendo caixinhas de cartão para as farmácias, objectou que tal lhe não dava arranjo.
- Bem vê … a gente gosta de receber o dinheirinho todo junto, para ajudar à renda da casa. Antes queria que me pagasse então tudo no fim do mês. Eu cá espero … Não desconfio …
Aceitei a proposta e fiquei, obrigado, por honra e brio, a arranjar os 15 tostões o mais depressa que pudesse.
*
E eis-me agarrado ao mesmo número do «Diário de Notícias», `procura de trabalho. Eu estava disposto a deitar a mão ao primeiro que encontrasse. Sentia-me capaz de ir para uma taberna lavar pratos, contanto que me dessem de comer e uns tostões para a renda do quarto. Quando se está nesta disposição, encontra-se trabalho.
E eu encontrei.
Estava a negacear-me um anúncio que dizia: - «Manteiga. Vendedores precisam-se. Calçada do Combro, número tantos».
Fui lá, julgando que queriam caixeiros. Não era isso. O que pretendiam era vendedores ambulantes, que dessem colocação à manteiga sobrante da venda ao balcão, de si bastante minguada.
Afoitei-me à aventura de vendedor ambulante de «manteiga de Sintra» (era assim que o homem lhe chamava) e já vão ver como dei conta de mim.
O manteigueiro queria depósito ou fiador. Depósito, não o podia dar quem tinha de seu, naquele fim de tarde, dezassete vinténs e a ignorância de onde lhe podia vir mais algum mísero centavo. Fiador, também não não era possível encontrá-lo quem quase não conhecia ninguém em Lisboa.
Contei ao sujeito a minha história – adequada à circunstância, claro está – em duas palavras e rematei:
- É pegar ou largar. Ou me confia a «fazenda» a crédito ou vou procurar outro modo de vida.
Ele franziu o sobrecenho com ar cogitativo e indeciso, concentrou-se na meditação dos riscos da proposta e acabou por se resolver bravamente à passagem deste Rubicon:
- Pois bem! O senhor tem cara de homem sério, mas a verdade é que a gente vê caras e não vê corações. Contudo, sempre lhe entrego a fazenda. Pode ganhar dois tostões por dia, mas tem de vender o mínimo de quatro latas. Cada uma custa 25 centavos. Se não lhe serve assim, dou-lhe meio tostão em cada lata.
Declarei logo preferir a segunda forma, porque não confiava muito na minha aptidão de vendedor e receava que o homem desistisse da cooperação ao cabo de poucos dias de experiência.
Entregou-me ele um cesto de verga, desses de duas tampas presas a um eixo subposto ao arco da pega, e saí para a minha «vida comercial». O homem ficou a coçar o queixo, outra vez de aspecto cogitativo e a resmonear atrás do balcão:
- Nunca o diabo leve mais.
*
Estava vendedor ambulante de manteiga. Mas a quem vender o produto? Eu era e sou a mais completa e decidida negação para o comércio. Todavia fazia-se mister começar…
Na prisão tivera por companheiro D. Tomaz da Câmara, filho do saudoso dramaturgo D. João da Câmara e cadete de cavalaria. Era um rapaz débil, enfermiço, muito inteligente, muito sério e extremamente bondoso. Acusavam-no de tentar, com outros, «derrubar a forma de governo republicana e restaurar a forma de governo monárquico», fórmula usada para todos os autos, que se levantavam aos presos «talassas». Queria o investigador e organizador do auto obter do rapaz a declaração de que conspirava e de quem teriam sido os seus cúmplices. D. Tomaz, de aparência tímida e acanhada, piscando os olhos atrás dos óculos de aro branco, era duma firmeza de ânimo e de carácter inquebrantável. Consentia em responder afirmativamente apenas à primeira parte e recusava-se a dar a menor indicação quanto à segunda.
- O senhor conspirou?
- Sim, senhor.
- Com quem?
- Não digo.
- Fica incomunicável!
- Sim, senhor.
Quando estávamos presos a visita da família ou dos amigos era sempre esperada com ansiedade. As minutos da hora da visita eram o oásis na monotonia daquele deserto moral, que nos parecia a sala 1 ou a sala 2 da Casa de Reclusão da 1ª Divisão Militar. À noite a secretaria comunicava ao D. Tomaz que lhe havia sido levantada a incomunicabilidade. E ele, pressuroso, mandava avisar a mãe, virtuosa senhora, ainda felizmente viva, as irmãs, o tio, o excelente D. Tomaz de Mello Breyner, conde de Mafra, o «Tomaz Mafra», tão estimado por quantos o conheciam. Ficava radiante, à espera da hora da visita. Mas sessenta minutos antes do momento apetecido, surgia o interrogatório:
- O senhor conspirou?
- Sim, senhor.
- Com quem?
- Não digo.
- Está incomunicável!
- Sim, senhor…
As visitas da família, o D. Tomaz, a senhora Condessa de Mafra ou outras pessoas, chegavam, mas não conseguiam ver o rapaz, porque o 2.029 estava outra vez incomunicável…
E isto durou dias seguidos, até que se convenceram não ser possível arrancar nada daquele testaçudo 2.027.
Mas esta divagação desviou-me do meio da narrativa. No próximo artigo se continuará.
CORREIA MARQUES
ESTE NÚMERO FOI VISADO
PELA COMISSÃO DE CENSURA
-----«ACÇÃO»---nº4–15-5-941
quinta-feira, 1 de julho de 2010
UM POUCO DE FOTOJORNALISMO...
Ao norte de Portugal, há uma aldeia chamada São Pedro de Rates, ou Rates simplesmente... há aí também uma rua, hoje renomeada "Rua Direita", no entanto, já teve o nome de "Rua Jornalista Pedro Correia Marques". Esse nome foi dado em homenagem ao ilustre ratense que nascera naquela aldeia, naquela rua e... nesta casa!

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