segunda-feira, 26 de outubro de 2009

CURSO DE JORNALISMO

A primeira reportagem

Há-de saber a História que o jornalista presente é nado e criado em S. Pedro de Rates, uma aldeia pitoresca da zona meridional da Província Interamnense, ali por onde a geografia administrativa diz ser já província do Douro, mas onde a constituição do solo, a natureza dos produtos e da paisagem, e a feição étnica e antropológica da gente afirmam testaçudamente ser Minho e muito Minho. Dali me levaram menino e moço, para o beneditinos de Singeverga, a-fim-de aprender a arte complicada do ler, escrever e contar e ainda para afeiçoar o espírito em moldes cristãos e bem portugueses. De qual fosse a causa desta levada não interessa à História, nem aos leitores de «Acção».

Em fins de 1909, por circunstâncias também sem interesse para o comum das gentes, achei-me no mundo, só como o espargo no monte, avulso, sem família e quase sem amigos – ante o gravíssimo problema de arranjar a vida como pudesse – honradamente e cristãmente, claro está. Tinha eu 19 anos, muitas ilusões e algumas esperanças.

*

Foi esta a minha primeira reportagem: achar a vida, furar no Mundo, que não me conhecia e que eu não o conhecia. Creiam que esta reportagem é às vezes muito dura e cheia de ansiedades e dificuldades. Compreendi então a verdade daquela palavra do Eclesiastes, que lera e meditara no cenóbio singevergano: Vae solil, quia cum ceciderit non habaet sublevantem se: Ai do homem só, porque, se cair, não achará quem o levante.

*

Verdadeiramente eu não estava só. Se não recorria a ninguém, nem sequer aos meus mestres beneditinos, era um pouco por orgulho e principalmente porque me julgava capaz de romper na vida, tendo apenas a ferramental das noções gerais, que trouxera como bagagem intelectual – Petrus in cunctis et nihil in omnibus.

Não estava pois só, porque estava comigo e com as minha ilusões. Mas no momento, este primeiro passo de reportagem era deveras difícil. E como não tivesse de quê e de quem me valer, resolvi o caso duma forma simples: faltava-me pouco tempo, escassos meses, para entrar nas «sortes». Antecipei-me e apresentei-me à porta da Infantaria nº 20, na sede do regimento, então instalada no Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães. E eis-me soldado.

Eu tomava a vida muito a sério. Ser militar, servir a Pátria e o Rei, era para mim uma coisa grave. Quando me leram os «Deveres Militares» - Todo o militar deve regular o seu procedimento pelos ditames da Religião, da Virtude e da Honra: amar a Pátria, ser fiel ao Rei. – senti-me comovido e investido em funções e deveres muito ponderosos.

*

Galucho era-o, pois, como passo intermédio na vida, para resolver a questão do momento. Estava solucionado um pouso o problema de emprego, antecipado o cumprimento dum tributo à Pátria e conseguido o tempo necessário para viver e, entretanto, filosofar.

*

A «tropa» trouxe-me a Lisboa numa transferência de praças do 20 para o 16. Vim encontrar a guarnição da capital muito trabalhada pela conspiração contra a Monarquia.

A propaganda fazia-se inteligentemente. Não alvejava apenas o regime e o Rei; atingia também os oficiais, que se sabia serem leais e valentes, capazes de oferecer resistência `aventura revolucionária. Havia soldados industriados para cometerem faltas disciplinares, quando esses oficiais estavam de inspecção ou de qualquer outro serviço, de tal guisa, que eles não pudessem deixar de punir as infracções do regulamento. Assim se conseguiu que determinados oficiais, óptimos como oficiais e como homens, fossem odiados pelas praças, que os acusavam de tiranos, déspotas, castigadores por prazer – de maneira a serem alvejados pelos soldados sediciosos, quando rebentasse a revolta.

E a verdade é que por isso foram assassinados o comandante do 16, coronel Celestino da Costa, homem de aprumo e honra, militar disciplinador, sem rigores desnecessários, e o capitão Barros, comandante da 1ª do 1ª, excelente pessoa, bonacheirão, verdadeiramente amigo da sua nobre profissão e dos seus soldados. E se mais assassínios se não cometeram, foi porque não houve ensejo para isso e porque, nesse género de «proezas» se estava então na «infância da arte».

*

Vieram a revolução de 5 de Outubro de 1910 e a proclamação da República.

Não me conformei. Ingenuamente comecei a agregar a mim os soldados que sabia sentirem instintiva e tímida desconfiança ante o regime, que se apresentava perseguidor da religião, que motejava, nos discursos oficiais e nas laudas das suas gazetas, das coisas e das pessoas mais respeitáveis, dos princípios mais venerados. Era eu o confidente das suas dúvidas e o secretário que lhes escrevia as cartas para as mães, para as namoradas.

- Ó cabo escreve-me uma carta para a minha cachopa?

- Vamos lá a saber: como se chama a pequena?

- Maria Antónia … Mas ê cá chamo-lhe Antoneca ..

- E que lhe quer dizer?

- Ora agora é que o cabo me há-de compor o ramalhete. Eu cá arrecebi a carta dela e fiquei munto contente das notícias que mandou. Quanto ao Francisco, o que lhe acontece foi o que sempre afuturê. E depois que ela bem sabe que nunca me esqueço dela e a trago sempre no pensamento.

- Bem. Deixa-me escrever.

E repetia-se a cena do Quien supiera escribir – com muito menos poesia, está bem de ver. Colm os elementos que o lapuz das Beiras ou de Alentejo me dava, enchia as quatro laudas do papel bem atestadinhas em letra miúda, o mais legível que podia. Quando lia a carta ao autor oficial dela, havia sempre a exclamação pasmada:

- Então o cabo conhece a pequena?

Tinha pois certo ascendente sobre a galuchada da companhia. Este aliciamento discreto levou-me à prisão. Na madrugada de 26 de Maio de 1911 fui remetido, sob custódia duma escolta, para a Casa de Reclusão instalada nos casarões do Castelo de S. Jorge, agora demolidos. E lá estive cerca dum ano. Julgado e absolvido por unanimidade, enxotaram-me logo da tropa, onde era suspeito. Certo alferes Ferreira, muito republicano e influente no regimento (era o esbôço, ainda muito impreciso, das futuras checas) ficou espantado ao ver-me outra vez no quartel e ainda mais espantado ao saber que o tribunal me absolvera por unânime consenso.

- Mas nós não te quermos cá!

- Nem eu quero cá ficar! – respondi logo.

E vi-me na rua, licenciado, a continuar a reportagem da procura do modo de vida

CORREIA MARQUES

- «ACÇÃO» --- nº 3 – 8-5-941

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Leia-se no link abaixo um artigo sobre o jornalista Pedro Correia Marques, fica a sugestão para outros pesquisadores que se interessem pelo trabalho do jornalista.

http://www.bocc.ubi.pt/pag/moreira-lucia-pedro-correia-marques.pdf

quarta-feira, 9 de setembro de 2009


Apreciem o primeiro texto publicado na coluna intitulada "Curso de Jornalismo" - Série de artigos de Pedro Correia Marques publicados entre os anos de 1941 – 1943 no semanário Acção, cujos dados principais são:

- Director: Manuel Múrias

- Propriedade da “Editorial Império Lda.”

- Editor: Armando António Martins de Figueiredo

- Redacção e Administração:Rua do Salitre 155, 2º

Telefone P.B.X. 48276/41011

- Composição e impressão na “Editorial Impédrio Lda.”

- Preço: Um Escudo

C U R S O D E J O R N A L I S M O


A MANEIRA DE INTRODUÇÃO

Peço aos leitores que não se assustem!

Esta secção chama-se o “Curso de Jornalismo”, não para ensinar como se faz um jornal, coisa simplíssima, se há-de fazer-se apenas para explorar uma indústria, e complexíssima, se se pretende exercer uma acção social e doutrinária.

- Sendo assim, porque se chama «Curso»?

Tem razão o leitor que dispara a pergunta. Responda-se sumariamente:

- Chama-se a esta secção «Curso», apegando-se o seu autor no sentido que Marco Túlio Cícero dava à palavra: tenere cursum – seguir uma carreira.

Costuma dizer-se que «o poeta nasce, o orador faz-se». Esta sabedoria paremiológica exprime uma verdade no consenso unânime de toda a gente admitida. Do jornalista se pode dizer que nasce e faz-se. Requerem-se umas quantas qualidades inatas, que o povo engloba na engenhosa designação de «feitio», e uns quantos dotes adquiridos pelo estudo e pelo trabalho.

Um dia contava eu ao dr. José de Figueiredo, que Deus haja, as circunstância em que entrei para o jornalismo e que me pareciam o que em linguagem familiar se chama perfeitamente «ratonas».

Foi em Abrunhosa-a-Velha, por ocasião duma visita que fizemos à Casa de Saúde que o prof. Costa Sacadura ali criou. Passeámos no largo principal da pitoresca aldeia, deliciados com o ar puro das montanhas da Beira, discorrendo, como dois peripatéticos, de omni re scibili … et quibusdam aliis, quando Figueiredo me larga a pergunta:

- Como foi o meu amigo parar ao jornalismo?

E vai eu contei-lho. Ouviu-me ele durante largo tempo, com atenção que eu supunha apenas cortês, e comentou apenas com estas interrogações:

- Porque não escreve tudo isso? Porque não arranja as suas memórias?

Ri-me, pensando que o meu amigo brincava.

- Fa… falo a sério! – rematou ele, algo formalizado, no seu gaguejar característico.

- Hei-de pensar nisso …

E fiquei a pensar no caso. Por fim resolvi escrever as tais memórias. Elas vão, referidas um pouco avulsamente, constituir o que eu chamo «Curso de Jornalismo».

* * *

Fique estabelecido que todos temos um pouco de jornalista, tal como, segundo o ditado espanhol, todos de poeta e de louco temos um pouco. O jornalismo é muito antigo. Começou, como o direito romano da anedota, por não existir. Mas logo que Deus criou o homem e lhe deu por companheira a mulher da vera costela masculina extraída, deve o jornalismo ter nascido. É de crer …

Podemos imaginar sem grande esforço que o nosso venerável antepassado, quando se viu no meio daquele vasto e delicioso domínio, que era o Éden, se deu a explorá-lo. A curiosidade, mãe da ciência, é inata neste bípede que se chama Homem. Para não se perder por entre a vegetação frondejante daquele delicioso paraíso, Adão deixaria nos troncos e nos rochedos um sinal, um ramo quebrado, nos arbustos, que lhe indicassem o caminho de regresso à lapa, onde o primeiro casal humano se abrigava.

Assim nasceu o jornalismo. E foi jornalismo de informação. Só não se lhe pode chamar de publicidade, porque os anúncios, embora de interesse estritamente pessoal, não eram pagos…

Mais tarde, perdidos aquele sossego e ventura primevos, o homem continuou a ser jornalista. Teve que lutar com os elementos e com os animais dos primeiros milénios, monstruosos e temíveis, muito mais fortes que o desengonçado ser humano, desprovido de garras e de colmilhos, parecendo destinado a sumir-se dentro de pouco tempo, extinto pela bruteza e força do urso spelaeus ou do rinoceronte tichorhynus. Valeu-lhe a inteligência, que o fez logo jornalista.

Por aquelas cavernas, onde se acoitava a pávida família humana, começou o homem primitivo a gravar com lascas de pederneira nas rochas mais macias a história de como caçara e vencera as grandes feras, de como eram os hábitos da brutalidade agressiva e até certamente a notícia dos lugares por onde era arriscado passar isolado o débil descendente de Adão.

¿Que era isto senão jornalismo, jornalismo de informação e até jornalismo daquela política primeira, que foi a defesa animal e arriscada da vida?

* * *

Ora pois! Todos temos portanto algo de jornalistas. Quando esta tendência jornalística natural se desenvolve um pouco, basta que as circunstâncias fortuitas da vida – a necessidade ou o acaso – façam rumar nesse sentido o curso dos factos, que constituem o endentamento das actividades de cada um, para que a jornalista surja no pleno sentido da palavra.

Claro está que se requerem uns tantos predicados: certa ilustração, conhecimento sumário das coisas que o homem moderno deve saber, um pouco de bom senso, um pouco de inteligência e um pouco de amor ao trabalho. Honestidade supõe-se tão necessária nesta como em todas as profissões.

Um dia, uma senhora perguntava a Compoamor como se fazem versos. E o poeta das Dolores:

- Muito facilmente: alinham-se as palavras bem certas do lado esquerdo e na extremidade direita fazem-se calhar em rima.

- E no meio?

- Ah! No meio um bocadinho de talento …

Para ser jornalista faz-se mister ter também um tanto de cada uma das qualidades e dotes que acima se indicam. E na dose precisa. Emílio Girardin, considerado um dos pais do jornalismo como hoje se exerce, costumava dizer aos redactores e repórteres incipientes, preocupados sempre com o estilo rebuscado e literário, que resultava pretencioso e ridículo:

- Et surtout, mês amis, pás de grammaire.

Esta «gramática» era o pedantismo da linguagem, o pretenciosismo do estilo grandíloquo ou adocicado, destemperado ou inadequado aos assuntos correntes do jornalismo.

Mas esta introdução saiu-me mais extensa do que os leitores podem suportar. Por hoje não enfado mais e ficará para a semana o começo do meu curso de jornalismo, a entrada em acção duma pessoa que havia de acabar por se ajeitar gostosamente dentro duma profissão a que de princípio se julgava pouco propensa.

CORREIA MARQUES

----- «ACÇÃO» --- nº 1 – 24-4-941

quarta-feira, 2 de setembro de 2009





Pedro Correia Marques, nasceu São Pedro de Rates, uma vila pertencente ao Concelho da Póvoa de Varzim - Portugal (terra de outro homem das letras, Eça de Queirós), a 26 de abril de 1890. Fez seus estudos primários (o equivalente à 3ª série do ensino fundamental) na escola Luís de Camões como bolsista do Asilo Santa Rita, que foi criado por donatários que moravam no Brasil (essa bolsa fora criada para dar assistência a duas crianças órfãs e carentes). Pedro Correia Marques era órfão de pai e sua mãe, que casara novamente, tinha dificuldades para criá-lo devido ao temperamento difícil do marido e ao fato deste já ter quatro filhas do casamento anterior. Assim, Correia Marques estudava na referida escola e morava no asilo. Ao terminar a 3ª série, foi freqüentar a escola claustral do Mosteiro de Singeverga da Ordem dos Beneditinos, de onde lhe veio uma formação sólida e latinista que marcaria o seu estilo jornalístico de uma maneira muito peculiar. Correia Marques ficou em Singeverga até aos 18 anos. Decidiu então sair do mosteiro e apresentar-se no quartel de Guimarães (Paço dos Duques de Bragança) para cumprir o serviço militar. Ao completar o tempo da recruta foi destacado para o quartel da Ajuda em Lisboa. Com a saída do exército, Correia Marques, ainda em Lisboa, começa sua trajetória no jornalismo:


Em fins de 1909, por circunstâncias também sem interesse para o comum das gentes, achei-me no mundo, só como o espargo no monte, avulso, sem família e quási sem amigos – ante o gravíssimo problema de arranjar a vida como pudesse – honradamente e cristãmente, claro está. Tinha eu 19 anos, muitas ilusões e algumas esperanças.


Foi esta a minha primeira reportagem: achar a vida, furar no Mundo, que não me conhecia e que eu não conhecia. Creiam que esta reportagem é às vezes mais dura e cheia de ansiedades e dificuldades. Compreendi então a verdade daquela palavra de Eclesiastes, que lera e meditara no cenóbio singevergano: Vae soli, quia cum ceciderit non habet sublevantem se: Ai do homem só, porque, se cair, não achará quem o levante.[1]








[1] Pedro Correia Marques. “Curso de Jornalismo – A primeira reportagem”. Acção, 08/05/1945, nº 3, p.4. (“Curso de Jornalismo” é uma série de artigos escritos por Pedro Correia Correia Marques, publicados entre os anos de 1941-1943, no semanário Acção, dirigido por Manuel Múrias em Lisboa.)