Há-de saber a História que o jornalista presente é nado e criado em S. Pedro de Rates, uma aldeia pitoresca da zona meridional da Província Interamnense, ali por onde a geografia administrativa diz ser já província do Douro, mas onde a constituição do solo, a natureza dos produtos e da paisagem, e a feição étnica e antropológica da gente afirmam testaçudamente ser Minho e muito Minho. Dali me levaram menino e moço, para o beneditinos de Singeverga, a-fim-de aprender a arte complicada do ler, escrever e contar e ainda para afeiçoar o espírito em moldes cristãos e bem portugueses. De qual fosse a causa desta levada não interessa à História, nem aos leitores de «Acção».
Em fins de 1909, por circunstâncias também sem interesse para o comum das gentes, achei-me no mundo, só como o espargo no monte, avulso, sem família e quase sem amigos – ante o gravíssimo problema de arranjar a vida como pudesse – honradamente e cristãmente, claro está. Tinha eu 19 anos, muitas ilusões e algumas esperanças.
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Foi esta a minha primeira reportagem: achar a vida, furar no Mundo, que não me conhecia e que eu não o conhecia. Creiam que esta reportagem é às vezes muito dura e cheia de ansiedades e dificuldades. Compreendi então a verdade daquela palavra do Eclesiastes, que lera e meditara no cenóbio singevergano: Vae solil, quia cum ceciderit non habaet sublevantem se: Ai do homem só, porque, se cair, não achará quem o levante.
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Verdadeiramente eu não estava só. Se não recorria a ninguém, nem sequer aos meus mestres beneditinos, era um pouco por orgulho e principalmente porque me julgava capaz de romper na vida, tendo apenas a ferramental das noções gerais, que trouxera como bagagem intelectual – Petrus in cunctis et nihil in omnibus.
Não estava pois só, porque estava comigo e com as minha ilusões. Mas no momento, este primeiro passo de reportagem era deveras difícil. E como não tivesse de quê e de quem me valer, resolvi o caso duma forma simples: faltava-me pouco tempo, escassos meses, para entrar nas «sortes». Antecipei-me e apresentei-me à porta da Infantaria nº 20, na sede do regimento, então instalada no Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães. E eis-me soldado.
Eu tomava a vida muito a sério. Ser militar, servir a Pátria e o Rei, era para mim uma coisa grave. Quando me leram os «Deveres Militares» - Todo o militar deve regular o seu procedimento pelos ditames da Religião, da Virtude e da Honra: amar a Pátria, ser fiel ao Rei. – senti-me comovido e investido em funções e deveres muito ponderosos.
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Galucho era-o, pois, como passo intermédio na vida, para resolver a questão do momento. Estava solucionado um pouso o problema de emprego, antecipado o cumprimento dum tributo à Pátria e conseguido o tempo necessário para viver e, entretanto, filosofar.
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A «tropa» trouxe-me a Lisboa numa transferência de praças do 20 para o 16. Vim encontrar a guarnição da capital muito trabalhada pela conspiração contra a Monarquia.
A propaganda fazia-se inteligentemente. Não alvejava apenas o regime e o Rei; atingia também os oficiais, que se sabia serem leais e valentes, capazes de oferecer resistência `aventura revolucionária. Havia soldados industriados para cometerem faltas disciplinares, quando esses oficiais estavam de inspecção ou de qualquer outro serviço, de tal guisa, que eles não pudessem deixar de punir as infracções do regulamento. Assim se conseguiu que determinados oficiais, óptimos como oficiais e como homens, fossem odiados pelas praças, que os acusavam de tiranos, déspotas, castigadores por prazer – de maneira a serem alvejados pelos soldados sediciosos, quando rebentasse a revolta.
E a verdade é que por isso foram assassinados o comandante do 16, coronel Celestino da Costa, homem de aprumo e honra, militar disciplinador, sem rigores desnecessários, e o capitão Barros, comandante da 1ª do 1ª, excelente pessoa, bonacheirão, verdadeiramente amigo da sua nobre profissão e dos seus soldados. E se mais assassínios se não cometeram, foi porque não houve ensejo para isso e porque, nesse género de «proezas» se estava então na «infância da arte».
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Vieram a revolução de 5 de Outubro de 1910 e a proclamação da República.
Não me conformei. Ingenuamente comecei a agregar a mim os soldados que sabia sentirem instintiva e tímida desconfiança ante o regime, que se apresentava perseguidor da religião, que motejava, nos discursos oficiais e nas laudas das suas gazetas, das coisas e das pessoas mais respeitáveis, dos princípios mais venerados. Era eu o confidente das suas dúvidas e o secretário que lhes escrevia as cartas para as mães, para as namoradas.
- Ó mê cabo escreve-me uma carta para a minha cachopa?
- Vamos lá a saber: como se chama a pequena?
- Maria Antónia … Mas ê cá chamo-lhe Antoneca ..
- E que lhe quer dizer?
- Ora agora é que o mê cabo me há-de compor o ramalhete. Eu cá arrecebi a carta dela e fiquei munto contente das notícias que mandou. Quanto ao Francisco, o que lhe acontece foi o que sempre afuturê. E depois que ela bem sabe que nunca me esqueço dela e a trago sempre no pensamento.
- Bem. Deixa-me escrever.
E repetia-se a cena do Quien supiera escribir – com muito menos poesia, está bem de ver. Colm os elementos que o lapuz das Beiras ou de Alentejo me dava, enchia as quatro laudas do papel bem atestadinhas em letra miúda, o mais legível que podia. Quando lia a carta ao autor oficial dela, havia sempre a exclamação pasmada:
- Então o mê cabo conhece a pequena?
Tinha pois certo ascendente sobre a galuchada da companhia. Este aliciamento discreto levou-me à prisão. Na madrugada de 26 de Maio de 1911 fui remetido, sob custódia duma escolta, para a Casa de Reclusão instalada nos casarões do Castelo de S. Jorge, agora demolidos. E lá estive cerca dum ano. Julgado e absolvido por unanimidade, enxotaram-me logo da tropa, onde era suspeito. Certo alferes Ferreira, muito republicano e influente no regimento (era o esbôço, ainda muito impreciso, das futuras checas) ficou espantado ao ver-me outra vez no quartel e ainda mais espantado ao saber que o tribunal me absolvera por unânime consenso.
- Mas nós não te quermos cá!
- Nem eu quero cá ficar! – respondi logo.
E vi-me na rua, licenciado, a continuar a reportagem da procura do modo de vida
CORREIA MARQUES
- «ACÇÃO» --- nº 3 – 8-5-941