C U R S O D E J O R N A L I S M O
Reportagem Continuada
Dei-me afanosamente a procurar maneira de ganhar a vida, a tal reportagem a que me referi na crónica passada. Desci do castelo de S. Jorge para a tarefa de arranjar num mundo, cada vez menos conhecido (do tempo passado em Lisboa o mais dele fora o lapso de onze meses e dezassete dias de prisão), o meio de angariar o pão de cada dia.
Encontrei-me em pleno Rossio, então ainda com a placa de calcáreo branco, ondulada de basalto negro, que servia de pretexto para os literataços da Estranja dizerem ser preciso ter le pied marin para o atravessar sem acessos de mal de mer. Todos os meus haveres eram o cotim da farda, um saco de chita com roupa e 5 centavos.
- Meu caro Pedro; há que sair deste passo com os cabedais que possuis … - monologuei.
Comprei o «Diário de Notícias», afim de procurar, primeiro que tudo, um quarto onde acoitar a carcassa. E tinha que ser mobilado.
O mais barato que encontrei foi um na Travessa dos Fiéis de Deus. Custava (O tempora!...) 15 tostões por mês. Estes 15 tostões dão bem a medida de quanto o mundo se modificou, evolucionou, de 1912 para cá.
Procurei o quarto. Era pequeno, modestíssimo, como se pode calcular, mas limpo e com luz que lhe vinha dum quintalório, onde medravam couves tronchas e uns craveiros bem tratados. Mas eu tinha apenas dezassete vinténs (já despendera 10 réis na aquisição do jornal…) e não sabia donde me viria o resto. Mentalmente fiz as contas: 15 tostões por mês era meio tostão por dia. Propus à dona da casa pagar-lhe dia a ia. «Como estava a ver, eu saíra da tropa e ainda nem tempo tivera para escrever para a terra…»
Ela, boa mulher de Mangualde, que reforçava o salário do marido, operário numa garagem da Avenida, fazendo caixinhas de cartão para as farmácias, objectou que tal lhe não dava arranjo.
- Bem vê … a gente gosta de receber o dinheirinho todo junto, para ajudar à renda da casa. Antes queria que me pagasse então tudo no fim do mês. Eu cá espero … Não desconfio …
Aceitei a proposta e fiquei, obrigado, por honra e brio, a arranjar os 15 tostões o mais depressa que pudesse.
*
E eis-me agarrado ao mesmo número do «Diário de Notícias», `procura de trabalho. Eu estava disposto a deitar a mão ao primeiro que encontrasse. Sentia-me capaz de ir para uma taberna lavar pratos, contanto que me dessem de comer e uns tostões para a renda do quarto. Quando se está nesta disposição, encontra-se trabalho.
E eu encontrei.
Estava a negacear-me um anúncio que dizia: - «Manteiga. Vendedores precisam-se. Calçada do Combro, número tantos».
Fui lá, julgando que queriam caixeiros. Não era isso. O que pretendiam era vendedores ambulantes, que dessem colocação à manteiga sobrante da venda ao balcão, de si bastante minguada.
Afoitei-me à aventura de vendedor ambulante de «manteiga de Sintra» (era assim que o homem lhe chamava) e já vão ver como dei conta de mim.
O manteigueiro queria depósito ou fiador. Depósito, não o podia dar quem tinha de seu, naquele fim de tarde, dezassete vinténs e a ignorância de onde lhe podia vir mais algum mísero centavo. Fiador, também não não era possível encontrá-lo quem quase não conhecia ninguém em Lisboa.
Contei ao sujeito a minha história – adequada à circunstância, claro está – em duas palavras e rematei:
- É pegar ou largar. Ou me confia a «fazenda» a crédito ou vou procurar outro modo de vida.
Ele franziu o sobrecenho com ar cogitativo e indeciso, concentrou-se na meditação dos riscos da proposta e acabou por se resolver bravamente à passagem deste Rubicon:
- Pois bem! O senhor tem cara de homem sério, mas a verdade é que a gente vê caras e não vê corações. Contudo, sempre lhe entrego a fazenda. Pode ganhar dois tostões por dia, mas tem de vender o mínimo de quatro latas. Cada uma custa 25 centavos. Se não lhe serve assim, dou-lhe meio tostão em cada lata.
Declarei logo preferir a segunda forma, porque não confiava muito na minha aptidão de vendedor e receava que o homem desistisse da cooperação ao cabo de poucos dias de experiência.
Entregou-me ele um cesto de verga, desses de duas tampas presas a um eixo subposto ao arco da pega, e saí para a minha «vida comercial». O homem ficou a coçar o queixo, outra vez de aspecto cogitativo e a resmonear atrás do balcão:
- Nunca o diabo leve mais.
*
Estava vendedor ambulante de manteiga. Mas a quem vender o produto? Eu era e sou a mais completa e decidida negação para o comércio. Todavia fazia-se mister começar…
Na prisão tivera por companheiro D. Tomaz da Câmara, filho do saudoso dramaturgo D. João da Câmara e cadete de cavalaria. Era um rapaz débil, enfermiço, muito inteligente, muito sério e extremamente bondoso. Acusavam-no de tentar, com outros, «derrubar a forma de governo republicana e restaurar a forma de governo monárquico», fórmula usada para todos os autos, que se levantavam aos presos «talassas». Queria o investigador e organizador do auto obter do rapaz a declaração de que conspirava e de quem teriam sido os seus cúmplices. D. Tomaz, de aparência tímida e acanhada, piscando os olhos atrás dos óculos de aro branco, era duma firmeza de ânimo e de carácter inquebrantável. Consentia em responder afirmativamente apenas à primeira parte e recusava-se a dar a menor indicação quanto à segunda.
- O senhor conspirou?
- Sim, senhor.
- Com quem?
- Não digo.
- Fica incomunicável!
- Sim, senhor.
Quando estávamos presos a visita da família ou dos amigos era sempre esperada com ansiedade. As minutos da hora da visita eram o oásis na monotonia daquele deserto moral, que nos parecia a sala 1 ou a sala 2 da Casa de Reclusão da 1ª Divisão Militar. À noite a secretaria comunicava ao D. Tomaz que lhe havia sido levantada a incomunicabilidade. E ele, pressuroso, mandava avisar a mãe, virtuosa senhora, ainda felizmente viva, as irmãs, o tio, o excelente D. Tomaz de Mello Breyner, conde de Mafra, o «Tomaz Mafra», tão estimado por quantos o conheciam. Ficava radiante, à espera da hora da visita. Mas sessenta minutos antes do momento apetecido, surgia o interrogatório:
- O senhor conspirou?
- Sim, senhor.
- Com quem?
- Não digo.
- Está incomunicável!
- Sim, senhor…
As visitas da família, o D. Tomaz, a senhora Condessa de Mafra ou outras pessoas, chegavam, mas não conseguiam ver o rapaz, porque o 2.029 estava outra vez incomunicável…
E isto durou dias seguidos, até que se convenceram não ser possível arrancar nada daquele testaçudo 2.027.
Mas esta divagação desviou-me do meio da narrativa. No próximo artigo se continuará.
CORREIA MARQUES
ESTE NÚMERO FOI VISADO
PELA COMISSÃO DE CENSURA
-----«ACÇÃO»---nº4–15-5-941
CORREIA MARQUES, UM JORNALISTA E MUITAS VOZES "Gosto de jornalismo, (...) – uma profissão cheia de imprevisto, de gimnástica mental, e, sobretudo, porque nele encontrei uma forma nobre e eficiente de servir as minhas ideias. Eu sou um homem para quem não há posições neutras nem indiferentes. Sou um homem de opinião. O jornalismo permite-me servi-la. Por isso gosto da minha profissão." (Pedro Correia Marques em entrevista Mundo Gráfico, “Gosta da sua profissão?”,15/04/1941, p. 18)
terça-feira, 20 de julho de 2010
quinta-feira, 1 de julho de 2010
UM POUCO DE FOTOJORNALISMO...
Ao norte de Portugal, há uma aldeia chamada São Pedro de Rates, ou Rates simplesmente... há aí também uma rua, hoje renomeada "Rua Direita", no entanto, já teve o nome de "Rua Jornalista Pedro Correia Marques". Esse nome foi dado em homenagem ao ilustre ratense que nascera naquela aldeia, naquela rua e... nesta casa!

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