sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Encontro de gerações...

Sou professora, coisa que gosto muito! Sou professora no curso de Jornalismo, coisa de que também gosto muito!!!! A aula era de "Cultura das mídias", falávamos de muitas coisas... imagine! Levei uns jornais antigos, uns "linguados" (tiras de papel onde os jornalistas e repórteres faziam seus rascunhos antes de montar a matéria com os tipos móveis...), levei os chamados "recortes", umas folhas onde se colavam matérias sobre diversos assuntos publicados em outros jornais, o famoso "clipping"...
De onde tirei todas aquelas raridades, devoradas pelos olhares curiosos e interessados dos alunos? Do acervo de Pedro Correia Marques!!!!
Sensacional ver o encontro das gerações: um "monstro" do jornalismo português e os futuros e entusiastas jornalistas brasileiros!
Valeu para a professora!!!






quinta-feira, 26 de abril de 2012

26 de Abril dia de São Pedro de Rates e de PEDRO CORREIA MARQUES

Se fosse vivo, Pedro Correia Marques continuaria com certeza sendo um grande jornalista! Estaria fazendo 122 anos... deixou muito como jornalista. Segue um texto seu, cristalino como deve ser o texto jornalístico (não importa se informativo ou opinativo!) As apreciações sobre a austeridade inglesa num momento delicado do pós-guerra, num texto que qualquer leitor poderia entender pela clareza e sobretudo pela contextualização que vai tecendo um panorama muito próximo ao entendimento do leitor. Aí vai então a lição...


COMO SE COME EM LONDRES

                Há cerca de dez anos esteve em Lisboa um jornalista alemão muito distinto – depois professor de jornalismo na Universidade de Hamburgo. Quando se retirou, após algumas entrevistas políticas, verificamos, ao despedirmo-nos que levava uma pasta cheia de relatórios de bancos e companhias e de recortes de informações econômicas e financeiras.
                E ante a nossa admiração por este interesse especialístico num homem que até 1918 fora oficial do Estado maior e então era jornalista, respondeu, em espanhol – a língua em que comunicávamos:
                - Cuando um aleman viene em um país extragero, La primera cosa que procura conocer es lo que esse país compra ó lo que esse país vende. Todo lo demás, lãs intervius con el señor Fulano ó com el señor Mengano, todo eso es panorama.
                Assim era então. Hoje, 16 meses decorridos sobre a Vitória, generalizadas as dificuldades da vida a todos os sectores da sociedade e a todos os países desta miseranda Europa, o que todos querem saber é o que os outros países comem e como comem.
                Certamente as preocupações de outra natureza e as predilecções de ordem cultural não despareceram, mas passou a vida a regular-se principalmente por esta sentença antiga:
                - Primum vivere, deinde philosophari.
                Na verdade, para que o espírito exerça a sua nobre actividade, é preciso que o suporte material subsista.
                Ora como vive a Inglaterra, que era uma nação poderosa e opulenta?
                Evidentemente, em corajosa restrição das suas mais caras e consuetudinárias comodidades. Aqueles pequenos almoços ingleses em que havia com tanta fartura o baconand eggs são hoje uma sobriedade monástica, de ordem penitente. No Hyde Park Hotel, onde nós estamos – e que é dos que servem melhor, segundo nos diz um estrangeiro que aqui está há largo tempo – o bacon and eggs só duas vezes por semana é servido com o café matinal. Mas o precioso toucinho vem reduzido a uma película tão delgada, que maravilha como foi possível cortá-la tão fina. Os ovos mexidos – que em breve amostra acompanham o Baco – são ffeitos com ovos em pó, um produto desidratado, desenxabidote.
                Nos outros dias da semana o bacon and eggs é substituído por uma salsicha... de pão, muito “desconsolada”, (a fazer saudades das alheiras, que ainda se encontram em Lisboa) ou por um bocado de arenque fumado. Um dos nossos companheiros não gostou da salsicha e no dia seguinte mandou vir o arenque fumado; mas o acepipe afigurou-se-lhe detestável. Provou e deixou. E solicitou do seu companheiro de quarto (a crise da habitação traz os hotéis sempre cheios e fomos aboletados a dois e dois) que perguntasse à criada – pois ele não fala inglês – se não havia outra espécie de peixe. E ela respondeu, amável, que sim e no dia seguinte traria outro peixe, E efectivamente, na manhã imediata, diz, empurrando a mesa do pequeno almoço:
                - Good morning, sirs: to-day another kind of fish.
                Destapamos, pressurosos o prato: era um bocado de arenque cozido, sem qualquer espécie de tempero, porque o azeite é produto de que há anos não há uma gota na Inglaterra e outras gorduras são tão escassas, que havia que comer o peixe a seco, sem tempero. Tem algo de sabor do bacalhau de qualidade mais baixa que encontramos em Portugal, mas que, temperado com seu escasso fio de azeite – escasso porque é pouquíssimo – e acompanhado dumas batatas e dois bocados de couve, se come com certo prazer. Sem mais nada, é um desconsolo, uma desolação. O autor destas linhas comeu corajosamente; o seu companheiro praticou novamente um jejum, provavelmente sem mérito, por não ser voluntário...
                Que mais? De açúcar, um quadradinho minúsculo, que se dissolve sem alterar sensivelmente o travo de café com leite. De resto, estamos quase acostumados: bebe-se, sem já se considerar triaga. Mas às vezes vem-nos uma saudade infinita da “Brasileira” do Chiado, onde o açúcar, já limitado, ainda é facultado em quantidade tão razoável...
                De manteiga dois quadradinhos minúsculos também e não nos admiramos disso, se tivermos em conta que a manteiga distribuída às donas de casa para todo o mês é a que outrora se consumia num dia.
                E ainda uma envergonhada amostra de doce de laranja e duas fatias de pão delgadinhas, uma tostada e outra ao natural... cortadas em diagonal para fazerem quatro porque os olhos também comem.
                Isto é hoje o pequeno almoço dos hoteis, outrora tão abundante e saboroso.
                O almoço e o jantar são igualmente reduzidos: se se como pão não se come doce como sobremesa, terá de se prescindir da pequena ração de pão distribuído – mais ou menos a quantidade equivalente ao meio “pão-seco” dos hotéis portugueses. Depois sopa – uma concha de qualquer “consomé” – ou acepipes, que constam de três ou quatro variedades de hortaliça em quantidades insignificantes e o prato do dia: duas ou três batatas e uma reduzida porção de carne, ave ou peixe. Vinho há que tirar daí o sentido, porque uma garrafa – e não das grandes marcas – custa 60$00 ou 70$00. Contentemo-nos com uma caneca de “pale ale”, esta cerveja especial da Inglaterra, a que o nosso paladar já se vai acostumando.
                Uma refeição destas custa 65$00 a 70$00, traduzida em português a moeda inglesa.
                Se quereis oferecer um jantar a um grupo de amigos, tomai cautela com os extraordinários, senão encontrar-vos-eis, no fim com uma conta de cinco libras (500$00) por cabeça...
                Os aspectos que encontramos nos mercados e nas lojas, advertem-nos desta gravidade alimentar. Uma galinha no mercado legal custa o equivalente a 80$00
                E nas casas de comidas se lêem avisos como este:
                - Regret: no crips without fish. (Não se vendem batatas fritas, sem se consumir peixe). Há gente que, pelas dificuldades da vida recorria ao consumo exclusivo das batatas, mais baratas que o peixe.
                Pelas paredes, pelos tapumes, pelos lugares habituais dos anúncios, lêem-se, em grandes caracteres, recomendações como estas:
                - If you don’t want it, why do you take it? (Se não precisa disso, porque se serve?)
                - Don’t ask for Bread unless you really want it? (Não peça pão, salvo se na verdade precisa dele).
                São admonendas aos que nos restaurantes se servem e deixam a comida nos pratos. Um dia o ministro da Alimentação viu que um jornalista americano deixara uma batata.
                - Porque não come o senhor essa batata? – perguntou.
                - Porque não me apetece – retorquiu o jornalista.
                - Mas não vê que dessa forma estraga um produto, que faz falta na economia da Inglaterra?
                - Sinto muito, mas não posso comer a batata...
                O ministro pegou num garfo, espetou a batata e comeu-a, consciencioso do valor do exemplo.
                Outros cartazes recomendam o trabalho como recurso para melhorar a vida:
                - Extra effort means better living now!
                A Inglaterra toda suporta valorosamente estas severas restrições. Há o mínimo suficiente para todos. Nada sobra a ninguém. E o regime é igual para todas as classes. Quando visitamos o porto de Londres, almoçamos com alguns dos directores: o almoço veio da cantina e foi igual ao de todos os operários. Isto dá ao sistema uma grande autoridade. O racionamento proporciona a cada um ração muito reduzida de peixe, carne, pão, chá, açúcar, gorduras. Mas a ração não falta. E se por um motivo imprevisto – uma greve por exemplo – não se fez a distribuição, o direito do consumidor não preteriu: receberá a porção atrasada com a nova porção “vencida” logo que seja possível.
                A Inglaterra trabalha intensamente, mas reserva para si apenas o mínimo indispensável. Tudo o mais é exportado, a fim de pagar o caríssimo preço da Vitória. Há aqui produtos ingleses livres de tabelamento, que se vendem mais caros em Picadilly que nas lojas da Baixa de Lisboa. Certas marcas de tabaco, por exemplo.
                Vai abrir uma exposição intitulada: - “A Inglaterra pode fazê-lo para demonstrar as possibilidades da indústria britânica, bastante e suficiente para produzir o de que a Nação necessita. E logo o característico humor britânico “lançou” este comentário:
                - “Pode fazê-lo, mas não para os ingleses”.
                É que a maior parte da produção nacional britânica se exporta. O “wisky”, a tradicional bebida inglesa, quase não se bebe na Inglaterra, pelo preço que atingiu. Mas a produção é a mesma, se não maior. Mas para exportação.
                O que principalmente interessa em tudo isto, é a disciplina do povo inglês, a sua compreensão da necessidade deste sacrifício, embora na Imprensa por vezes surjam críticas à maneira como, num outro pormenor, o sistema funciona.
                Londres, 21 de Setembro
                                                                                                                                             C.M.
(Publicado na coluna criada pelo jornalista "Das ideias e dos factos", em “A Época” (?) em 24 de setembro de 1946)